A ESCOLHA // #2 // Lucy e Aspen
NOTA DA TRADUTORA: Esta é uma cena bônus do livro A Escolha que foi disponibilizada em sua edição especial para a livraria ‘Barnes & Noble’. Não foi publicada nas outras versões por se tratar de um bônus para uma versão limitada. Esta cena é narrada pela personagem Lucy, uma das criadas de America Singer, no palácio.
— Por que você não me contou? — sussurrei para Aspen, minhas palavras quase inaudíveis sobre o zumbido do avião.
De repente ele se tornou mais uma vez essa coisa inatingível. Eu poderia listar a idade e peculiaridades de todos os seus irmãos, contar a história por trás da longa cicatriz de seu braço e explicar em detalhes quanta saudade ele sentia do pai. Mas agora que eu sabia a verdade, tudo isso parecia falso. Apesar de três semanas de longas conversas e beijos escondidos, era quase como se não o conhecesse completamente.
Eu brincava com um pedaço de meu uniforme. Depois dos vestidos bonitos que eu tinha usado na casa dos Singer — até mesmo as roupas velhas da minha senhora — agora ele parecia muito áspero. Sempre apertado, sempre engomado, sem espaço para brincar, dançar ou mesmo abraçar. Apenas mais uma gaiola.
— Eu estava com medo de colocá-la em uma posição embaraçosa. — Eu podia dizer que havia mais coisas que ele gostaria de falar. Ele era geralmente tão confiante. Era uma das muitas coisas que me atraíram nele — e uma das nossas diferenças mais marcantes. Na maioria dos aspectos, eu pensei que éramos semelhantes. Dedicado a um problema; do tipo que os outros possam subestimar, porque nós levamos tempo formando nossos pensamentos; do tipo que mantém partes de si mesmo escondidas na escuridão. Mas ele era autoconfiante. Corajoso. Um tomador de riscos. Eu queria ser tão corajosa quanto ele era.
Tão corajosa quanto a senhorita America.
O primeiro amor dele?
Arrisquei uma olhada em seu rosto e pude ler a decepção.
— Apaixonar-me por você era a última coisa que eu esperava que me acontecesse — disse ele. — E eu já perdi alguém que uma vez foi especial para mim.
Eu olhei para o corredor. Podia ver apenas um pedaço do cabelo da minha senhora e seu dedo aflito fazendo uma figura de oito de novo e de novo.
Especial para mim.
Virei para ele, enquanto ele continuava.
— Eu acho que você não gostaria de estar comigo se soubesse que a última garota com quem eu me preocupei era a mesma que você vestia todas as manhãs.
Lágrimas incomodaram meus olhos, mas eu lutei contra elas. Ultimamente eu vinha vencendo-as por tantas vezes. Precisava agradecer a Aspen por isso.
— Eu te disse tudo — respirei, ainda empurrando a dor. — Foi aterrorizante deixar você saber o quão perto da felicidade eu já tinha estado anteriormente, quão quebrada eu estava no palácio, como querer você tem arruinado meu relacionamento com Anne e Mary.
— Elas não têm nada a ver com você e eu — ele rebateu rapidamente.
— Elas têm tudo a ver com a gente. Assim como ela — acrescentei, apontando para a senhorita America. — Assim como a sua família, o príncipe e o meu pai. Porque nós vivemos nossas vidas com eles, Aspen. Você não pode ter um relacionamento em uma bolha. Ele não vai sobreviver.
Aspen piscou algumas vezes, como se isso tivesse atingido-o em alguns dos lugares mais distantes de si mesmo. Ele sacudiu a cabeça.
— Você está certa e é por isso que você tem que saber: não importa o quanto eu quisesse que funcionasse, na época; aquele relacionamento não teria durado. Ele nunca havia visto a luz do dia.
— Nem o nosso — suspirei sem desviar o olhar. Ele e eu precisávamos confessar o que éramos e tudo o que havíamos construído — e quão rápido estava desmoronando.
— Eu pensava que era o melhor. Num primeiro momento, ao menos. Mas eu não quero que continue assim.
Eu estava tão cansada de desculpas. Elas pareciam cair sobre mim de todos os lados. Você não pode se apaixonar por causa de sua casta. Você não pode manter a sua mãe porque ela está doente. Você não pode se sentir segura, porque mesmo o palácio não é suficiente para protegê-la. Motivos estúpidos um após o outro construíram um muro entre mim e uma vida com qualquer tipo de alegria.
— O que posso fazer, Lucy? — ele implorou. — Diga-me o que você quer.
Virei para ele:
— A verdade.
Aspen se sentou, preparando-se. Eu não sabia se havia uma questão em particular que ele estava com medo de ouvir, mas eu comecei com a que eu estava mais preocupada em perguntar.
— Você ainda a ama?
Ele balançou a cabeça quase que instantaneamente, mas eu o parei.
— Não me diga o que você pensa que eu preciso ouvir. Não tente me proteger. Conte-me tudo...
Um guarda cutucou sua cabeça, de seu lugar algumas fileiras atrás e eu me calei, olhando para Aspen e esperando. Ele engoliu em seco.
— Eu acho que uma parte de mim sempre irá. Eu não consigo dissolver o desejo de lutar por ela, de resgatá-la. Eu não sei se é um amor romântico, mas eu sei que está aqui. E eu sei que quando o príncipe se casar com ela, e eu tenho certeza que agora ele vai, não aceitarei muito bem. Porque é difícil ver algo que você queria tanto, simplesmente desaparecer.
Abaixei minha cabeça. Claro.
— Mas, eu também sei — ele continuou — que se ela quisesse ficar comigo de novo, eu passaria todos os dias olhando para trás, para este momento, e me perguntando “E se?” sobre você. Demorou anos para que ela tivesse esse efeito sobre mim. Para você, levou semanas.
Senti minhas bochechas ficarem rosadas. Eu queria tanto acreditar que me obriguei a ser tão firme com ele como ele foi comigo.
— Ela tentaria? Ela pediria para voltar para você? — Em sua casa, senhorita America tinha gritado que seu relacionamento com Aspen era passado. Mas se isso era verdade, por que ambos pareciam tão nervosos sobre isso?
Ele considerou.
— Não. Ela vai se casar com o príncipe.
Inclinei-me.
— Essa escolha é de Vossa Majestade, não dela. Você está assumindo que o Príncipe Maxon vai pedi-la em casamento. E se ele não pedir? Será que ela vai querer você, então? Ela tem algum motivo para acreditar que você estará à espera?
Eu poderia dizer pelo seu olhar que ele não queria me responder. Por fim, ele concordou.
Afastei-me, apertando-me no assento. Anne estava certa. Eu mirei muito alto.
— Lucy — suplicou. — Lucy, olhe para mim.
Sua voz era suave, cheia dos nossos segredos. Ela me implorava para não ir embora. E eu senti tudo isso. A maneira como ele me fez rir e a sensação de seus dedos fazendo cócegas no meu rosto. O mel e cascalho no som de sua voz no meu ouvido e as piscadelas rápidas que ele me lançava sorrateiramente nos corredores.
Convoquei todos os últimos fragmentos de força que tinha e olhei para ele.
— Por favor, senhor, não fale comigo de maneira tão íntima. Eu não desejo me envolver com um homem compromissado.
Com a respiração irregular, eu lutei para me manter inteira. Encarei a janela, observando como perseguíamos a luz do dia na direção do lar. Eu não queria pensar sobre as complicações de nossa vida juntos, no palácio, então me concentrei naquele momento, ali e agora. Se eu aguentasse firme cada minuto, eu poderia vencê-los.
— Lucy — suplicou. — Eu prometo a você, eu vou corrigir isso. Vou corrigir agora.
Ouvi-o ficar em pé e vi atentamente enquanto ele caminhava para minha senhora.
Agora? O que no mundo ele poderia dizer a ela agora? Contaria a ela sobre nós? Será que ela me odiaria?
Não, ela não poderia. Eu estive ao lado dela durante meses. Eu cuidei dela através de problemas e da perda de sua melhor amiga. Eu tinha me sacrificado por ela e ela tinha feito o mesmo por mim. Nenhuma outra garota da Elite teria pensado em arrastar suas criadas para o abrigo reservado da Família Real. Senhorita America não pensara duas vezes. Eu tinha colocado minha cabeça em seu ombro na noite em que ela fez sua apresentação. Ela me vestiu com suas roupas como se fosse uma irmã. Ela me defendeu.
Meu coração acelerou com a esperança impossível — minha senhora poderia alegrar-se por mim.
Por um momento bonito, eu estava consumida por uma antecipação que brilhava. Talvez eu não tivesse sido infeliz à toa!
Ouvi um som abafado quando alguém sentou-se. Era Aspen, uma fileira atrás de mim e do outro lado do corredor. Ele não olhou na minha direção. Ele não fez nada.
Então ele não estava livre. E eu, muito menos.
(...)
Dentro do palácio, eu fiquei atrás de minha senhora, agradecida por outro alguém vir retirar seu casaco. Eu estava com medo do que ela podesse ver em meus olhos se eu me aproximasse demais.
Aspen afastou-se para conversar com um oficial supervisor e a senhorita America foi escoltada para uma recepção de boas-vindas.
Ninguém notou quando eu deslizei para o Grande Salão. De lá, eu poderia sair para o salão por uma porta lateral e voltar a ser invisível.
Tentei não provocar meu desapontamento. Ao menos eu tinha um lar. Meu pai ainda estava por perto. Eu tinha provado do amor duas vezes em minha vida. Não durou, mas era mais do que Mary ou Anne jamais tiveram.
Eu deveria ser grata.
Mas eu estava tão cansada de ser grata por uma vida não vivida plenamente.
Fiz meu caminho escada abaixo, notando quando cheguei à sala de estar, que estava vazia. Finalmente, estava sozinha. Caí bruscamente sobre uma cadeira antiga, frágil, puída e deixei as lágrimas virem. Enterrei meu rosto em minhas mãos, tentando bloquear e soltar tudo ao mesmo tempo. Deus, isso doía. Doía pensar em seus lábios nos meus, em todas as possibilidades que ele sussurrara para mim nos quartos escuros. Ele parecera tão real, tão possível.
Mas eu estive brincando comigo mesma. Tinha sido muito fácil me agarrar a ele após anos de tristeza, como a centelha da Estrela do Norte, na noite.
Isso simplesmente não era para ser. Não para alguém como eu.
Não importa.
Era a hora de afastar a esperança à qual eu tinha me segurado e abraçar o que estava de frente a mim. Eu trabalharia como criada até não ser considerada bonita o suficiente ou em boa forma o suficiente para ser uma das faces do palácio. Quando isso acontecesse, eu trabalharia na lavanderia. Eu cuidaria de meu pai até que ele morresse e dedicaria minha vida a serviço da coroa. Era tudo o que eu tinha.
— Lucy.
Afastei minhas mãos de meu rosto. Aspen tinha se esgueirado sobre mim. Afastando as lágrimas, coloquei-me em pé e caminhei para o alojamento das criadas.
— Por favor, me deixe sozinha. Isso só piorará as coisas.
— Eu tentei falar com ela, mas ela está com medo de enfrentar Maxon. Ela não estava pronta para ouvir. De manhã, eu farei questão dela saber que já estou em outra.
— Se você se importa de alguma forma, não faça isso comigo. Você sabe que eu já passei pelo suficiente. Não preciso de outra mentira.
Eu fui até o meio da sala antes de Aspen agarrar meu braço, obrigando-me a encará-lo.
— Isso não é uma mentira, Lucy.
Eu queria acreditar, aceitar o olhar em seus olhos como a verdade. Mas se ele já tinha mantido esse segredo uma vez — se ele já tinha prometido uma vez consertar as coisas e falhado — como eu poderia?
— Vou te odiar para sempre por partir meu coração — prometi. — Mas sabe o que é pior?
Ele negou.
— Que eu vou te amar para sempre, também. Você salvou minha vida. Eu estava desmoronando dentro de mim mesma e você fez isso parar. Essa é a pior parte.
Ele me encarou, aterrado.
— Como? Como eu salvei sua vida?
Dei de ombros.
— Apenas por existir. Nós dois perdemos pais e tivemos que nos contentar com quase nada. Nós vimos os rebeldes de perto. Nós estivemos sendo forçados a guardar muitos segredos. Mas você não deixou isso te esmagar. Eu pensei que se você pudesse se manter forte, eu também poderia.
Eu me espreitei, odiando a mim mesma por querer olhar em seu rosto tão arduamente. Fiquei chocada quando encontrei seus olhos quase transbordando lágrimas.
— Minha mãe nasceu uma Quatro — ele confessou. — Ela desistiu de tudo para viver com meu pai. Algumas vezes eles conversaram sobre como eles começaram seu casamento, sem moradia e com um sorriso no rosto.
Ele sacudiu a cabeça, seus lábios quase se levantando para sorrir.
— Ele desistiu de muito, por ela. Ele usava sapatos com as solas completamente gastas, mas depois dava a volta e comprava uma laranja para ela. Ela amava laranja. E era para ela trabalhar, mas ela estava doente, então ele fazia o trabalho dele e o dela, mesmo que isso significasse passar dias sem poder dormir. E minha mãe? Sua família a abandonara. Ela deixara uma vida limpa e segura por um apartamento lotado de crianças. Então ele morreu e ela manteve seu sacrifício.
Ele parou, talvez triste por sua mãe ou por seu pai. Talvez apenas por si mesmo. Ver o ligeiro tremor em seus lábios foi demais para mim e eu não pude parar de chorar.
— Então esse é o único tipo de amor que eu já compreendi. Quando você ama alguém, você se sacrifica. E eu me recusava a deixar alguém fazer isso por mim — ele insistiu, espetando um dedo sobre seu peito. — Eu queria ser o heroi. America e eu podíamos discutir o tempo todo sobre isso. Ela estava pronta para descer uma casta por mim, mas eu não poderia deixá-la. Eu queria ser o único a fazer toda a doação, todo o fornecimento e toda a proteção. Para então descobrir que consegui isso sem fazer absolutamente nada.
Ele levantou os braços e deixou-os cair. Como se estivesse muito cansado.
— E você provavelmente não tem ideia — ele murmurou — de que tem feito o mesmo comigo.
Ele ficou embaçado através das lágrimas.
— O que quer dizer?
Ele entrelaçou seus dedos nos meus.
— Todo dia você faz ou diz algo que me desafia, que me muda. Você acha que caminha, Lucy? Você voa. Você se vê em um uniforme? Eu te vejo em uma capa. Você é uma heroína da silenciosa, porém da mais genuína natureza.
Eu olhei fixamente para o chão. Ninguém falara sobre mim desse jeito. Eu era apenas uma criada. Era apenas uma Seis. Sem importância.
Senti seus dedos deixarem minhas mãos e segurar meu queixo. Pedindo-me para olhá-lo — não forçando. Eu olhei.
— É por isso que você não pode desistir. Herois não desistem. — Tentei esconder meu sorriso, mordendo a parte de dentro de minhas bochechas. — Você me tornou algo melhor. E eu quero ser melhor para você. Eu quero ser melhor com você.
Eu fiquei na ponta dos pés, colando minha testa à dele.
— Mas você já é o suficiente, Aspen. Simplesmente do jeito que é.
A respiração dele ficou presa.
— Isso significa que estou perdoado?
Falei pelos cotovelos:
— Eu quero ser sua. Você sabe disso. Soube desde o início.
Ele sorriu ironicamente e havia algo malicioso em seu sorriso.
— Verdade. Nunca vou esquecer.
— Nem eu.
Questão de horas após a Senhorita America ter anunciado que ficaria no palácio e que lutaria, decidi lutar também. Quando encontrei Aspen fazendo a ronda naquela noite, eu soltei um convite atrapalhado para que ele fosse comer comigo. Ele olhou com tanta surpresa que eu quase dei as costas e corri... Mas ele aceitou. E eu tenho antecipado tudo desde então. Meus anseios, minhas esperanças, meus sentimentos.
Aspen, por outro lado...
Eu me afastei e olhei profundamente em seus olhos.
— Eu amo você, Aspen. Eu sei disso com mais certeza do que qualquer outra coisa sobre mim mesma. Mas não posso estar com você se você ainda está ligado à senhorita America.
Ele assentiu.
— Eu sei que disse que sempre fui atraído por ela e quis dizer isso mesmo. Nós estivemos conectados por muito tempo para que eu não fosse. Mas tudo o que eu sou é seu. E prometo a você: amanhã cedo, custe o que custar, eu farei isso direito.
Eu não duvidei dele. Eu poderia perdoar seus erros, ele perdoaria minha raiva e amanhã nós começaríamos de novo. Porque, de verdade, não havia muito tempo.
— Por favor, não me desaponte — respirei.
— Nunca — prometeu, abaixando sua boca para a minha.
Eu queria ficar lá a noite inteira, segurando-o, sentindo sua promessa se estabelecer. Aspen segurou-me para si e o mundo inteiro parecia lindo e seguro.
Um assobio baixo chamou nossa atenção.
— Ah, olá, Oficial Avery — gaguejei, afastando-me e ajeitando meu vestido. — O Oficial Leger e eu estávamos... é... estávamos...
Olhei de soslaio para Aspen, mas ele estava apenas sorrindo.
— Olhem, eu vi isso surgindo semanas atrás, então vocês não precisam explicar nada para mim — disse o Oficial Avery, sorrindo ironicamente, conforme andava através da sala.
— Está indo descansar? — Aspen perguntou a ele.
Ele acenou os braços pelo espaço vazio.
— Você não pode deduzir? Estamos todos de plantão. Eu esqueci meu cinto, então vou buscá-lo e ir diretamente para o meu posto. O anúncio acontecerá pela manhã, então todos estão trabalhando.
Eu cobri minha boca, chocada, animada e aterrorizada. Amanhã nós teríamos uma nova princesa!
— Eu sei que você acabou de voltar, mas você ficará de plantão esta noite guardando a senhorita America.
Avery deu a Aspen uma simpática palmadinha no ombro antes de desviar para seu quarto e sair do alcance da voz. Aspen olhou para mim.
— Acho que isso significa que cuidarei disso bem cedo.
Eu ri, sentindo como se nada pudesse me conter dentro de mim mesma, nem as paredes do palácio ou a costura de meu vestido.
— Eu amo você, Lucy. Você cuida de mim e eu cuido de você?
Isso não era uma promessa, mas sim um convite. E eu assenti, aceitando, dando um passo para um futuro maior do que nenhum de nós poderia ter imaginado.